O espelho da falta: a dinâmica psicológica da inveja

Por que o sucesso alheio incomoda e o que isso diz sobre nós

Por Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro, CRP 06/199338

11/12/2025 às 02:48, atualizado em 11/12/2025 às 02:48

Tempo de leitura: 5m

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Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro
Psicólogo
CRP 06/199338 Mogi das Cruzes/SP
Possui vagas para atendimento social

Na literatura clássica, Dante Alighieri imaginou, na Divina Comédia, que os invejosos teriam seus olhos costurados com arame no Purgatório. A metáfora é cirúrgica, pois a palavra inveja deriva do latim invidia, que significa "não ver" ou "olhar com malícia". Contudo, para a psicologia clínica contemporânea, a inveja não é apenas um vício moral, mas um sinalizador complexo de necessidades emocionais não atendidas e de aprendizagens disfuncionais. Ela opera como um alarme doloroso que dispara quando a realidade do outro ilumina a nossa própria percepção de escassez. O olhar cognitivo: distorções e crenças

Quando analisamos o invejoso sob a ótica da Terapia Cognitivo-Comportamental, não vemos um vilão, mas um indivíduo capturado por um processamento de informações enviesado. Como Aaron Beck, o pai da TCC, postulou em suas obras seminais, nossas emoções são produtos de como interpretamos os eventos, e não dos eventos em si. O invejoso sofre de uma distorção cognitiva específica, um erro de lógica mental, onde ele equaciona o sucesso alheio ao seu próprio fracasso.

Beck descreve as "crenças nucleares", que são ideias profundas e rígidas que temos sobre nós mesmos. No indivíduo corroído pela inveja, a crença central geralmente é de desvalor ou incompetência. Ao ver o triunfo do outro, ativa-se automaticamente o pensamento: "se ele tem isso, significa que eu sou inferior". O invejoso não quer apenas o objeto do desejo; ele quer o alívio da dor de se sentir menor.

O ambiente e o comportamento: a visão de Skinner

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Ao expandirmos a lente para a Análise Experimental do Comportamento, buscamos as raízes dessa emoção na história de vida do sujeito. B.F. Skinner, em Ciência e Comportamento Humano, nos ensina que sentimentos são subprodutos de contingências de reforçamento, ou seja, das relações de causa e efeito que vivemos. A inveja pode ser entendida como um subproduto de um ambiente de privação e competição.

Se um indivíduo cresceu em um contexto onde o afeto ou os recursos eram escassos e apenas o "melhor" recebia atenção, ele aprendeu que o sucesso do outro é um sinal discriminativo para a sua perda. Skinner argumentaria que o comportamento de invejar é mantido porque, socialmente, fomos condicionados a nos comparar. O "ataque" ao invejado, seja por críticas ou fofocas, funciona muitas vezes como um reforço negativo, um mecanismo que remove momentaneamente o desconforto da própria insegurança ao tentar diminuir o status do outro. O diagnóstico e a norma

É fundamental diferenciar a emoção transitória da patologia. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em sua revisão mais recente, o DSM-5-TR, lista a inveja frequente ou a crença de ser invejado como um dos critérios diagnósticos para o Transtorno da Personalidade Narcisista. Nesse quadro, a inveja não é apenas um sentimento, mas um traço rígido que impede a conexão empática.

Similarmente, a Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS), a CID-11, ao abordar os transtornos de personalidade, observa padrões de desadaptação social. A inveja crônica pode ser vista como um desses padrões, onde o indivíduo falha em manter relacionamentos satisfatórios porque a existência do outro é vista sempre como uma ameaça à sua autoimagem. O fardo do invejado e a neurobiologia

Para quem é alvo da inveja, a experiência pode ser isoladora. A neurociência moderna, embora não deva ser o único foco, oferece um correlato interessante para esse fenômeno social. Estudos de neuroimagem mostram que a dor da inveja ativa o córtex cingulado anterior dorsal, a mesma região cerebral que processa a dor física. Ou seja, para o cérebro, a inveja dói literalmente como um ferimento.

Por outro lado, o invejado muitas vezes sofre sem saber, tornando-se alvo de hostilidades inexplicáveis. Em ambientes corporativos ou familiares, isso gera um ciclo de desconfiança que a OMS frequentemente aponta como fator de risco para o estresse ocupacional e o burnout, deteriorando o clima emocional de grupos inteiros. Transformando a falta em potência

A saída desse labirinto emocional exige um recondicionamento deliberado. A neuroplasticidade, a capacidade do cérebro de formar novas conexões ao longo da vida, nos permite aprender novas formas de reagir ao sucesso alheio. O primeiro passo é a validação da dor, reconhecendo que a inveja é apenas uma informação sobre o que valorizamos e ainda não alcançamos.

Em vez de focar na destruição do objeto desejado, a psicologia propõe a modelagem. Podemos usar o sucesso do outro como um mapa, e não como um espelho de nossas falhas. Ao mudarmos a contingência de competição para cooperação e substituirmos a comparação tóxica pela admiração construtiva, transformamos a energia da inveja em combustível para o próprio crescimento. É possível, com treino e consciência, deixar de olhar para o lado e começar a olhar para a frente.

Referências
 
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5-TR. 5. ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2023.

BECK, Judith S. Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2021.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde: CID-11. Genebra: OMS, 2022.

SKINNER, Burrhus Frederic. Ciência e comportamento humano. 11. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 

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