Nem tudo que alivia cura: a fronteira vital entre hobby e tratamento

Por que desabafar com amigos ou fazer massagem não substitui a ciência da mudança comportamental

Por Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro, CRP 06/199338

11/12/2025 às 03:47, atualizado em 11/12/2025 às 03:47

Tempo de leitura: 4m

Foto do profissional Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro
Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro
Psicólogo
CRP 06/199338 Mogi das Cruzes/SP
Possui vagas para atendimento social

É comum ouvirmos em conversas informais frases como "correr é a minha terapia" ou "cozinhar é terapêutico para mim". Embora essas atividades sejam imensamente prazerosas e saudáveis, existe um abismo técnico e metodológico entre algo que possui efeito terapêutico e o processo clínico denominado psicoterapia. A confusão entre buscar alívio momentâneo e buscar tratamento estrutural pode atrasar diagnósticos importantes e prolongar o sofrimento. Para esclarecer essa distinção, precisamos recorrer aos fundamentos da ciência psicológica e aos manuais internacionais de saúde.

O termo terapia é um guarda-chuva amplo. Ele abarca qualquer prática que promova bem-estar, relaxamento ou alívio de sintomas. Uma massagem, uma aula de ioga ou uma conversa com um amigo íntimo podem reduzir o cortisol e aumentar a dopamina, gerando uma sensação imediata de prazer. Sob a ótica do Behaviorismo Radical de B.F. Skinner, descrita em Ciência e Comportamento Humano, essas atividades funcionam, muitas vezes, como reforçadores positivos arbitrários. Elas nos dão uma recompensa imediata que alivia o mal-estar, mas não alteram necessariamente as causas raízes do nosso comportamento.

A psicoterapia, por outro lado, é um tratamento de saúde regulamentado e baseado em evidências científicas. Ela não visa apenas o alívio, mas a reestruturação. Na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), Aaron Beck estabeleceu que o objetivo não é apenas "conversar", mas identificar e modificar crenças centrais disfuncionais. São as ideias rígidas que temos sobre nós mesmos, como "sou incompetente" ou "o mundo é perigoso". Diferente de um amigo que oferece conselhos baseados em sua própria vida, o psicoterapeuta utiliza protocolos validados para ajudar o paciente a desenvolver novas habilidades de enfrentamento.

Uma diferença crucial reside no conceito de análise funcional. Enquanto atividades de lazer nos distraem dos problemas, a psicoterapia, fundamentada na Análise Experimental do Comportamento (AEC), nos obriga a olhar para eles. O profissional investiga as contingências de reforço, ou seja, o que mantém um comportamento problemático acontecendo. Por vezes, o processo psicoterapêutico não é relaxante; ele pode ser desconfortável a curto prazo, pois envolve entrar em contato com emoções difíceis para, através da extinção ou da habituação, reduzir o impacto delas a longo prazo. É como limpar uma ferida: arde para poder cicatrizar, diferentemente de apenas colocar um curativo para não ver o machucado.

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O rigor dessa diferenciação é respaldado pelas instituições globais. O DSM-5-TR e a CID-11 da Organização Mundial da Saúde (OMS) categorizam transtornos mentais que exigem intervenção clínica específica. Ansiedade Generalizada, Depressão Maior ou Transtorno Obsessivo-Compulsivo não são curados com "terapias alternativas" ou hobbies, pois envolvem desregulações cognitivas, comportamentais e neurobiológicas complexas. A OMS define saúde mental não apenas como ausência de doença, mas como um estado de bem-estar onde o indivíduo realiza suas capacidades e lida com o estresse normal da vida. Para atingir esse estado quando há patologia ou sofrimento intenso, a intervenção técnica da psicoterapia é insubstituível.

Em suma, enquanto as "terapias" do cotidiano nos ajudam a suportar a vida, a psicoterapia nos instrumentaliza para mudá-la. Graças à neuroplasticidade, a capacidade do cérebro de se reorganizar, o processo clínico constrói novas vias neurais de pensamento e ação. Portanto, continue correndo, pintando e conversando com amigos, pois isso é vital para sua manutenção. Mas quando a dor persistir ou os padrões se repetirem, busque a ciência da psicologia. O alívio é bom, mas a cura e a autonomia são libertadoras.

Referências
 
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-5-TR: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5. ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2023.

BECK, J. S. Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2021.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-11). Genebra: OMS, 2022.

SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. 11. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 

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