É só querer e fazer. Se não sai do lugar, não tem o que fazer. Será?

Por que a neurociência e a análise do comportamento refutam a "força de vontade" como motor primário da mudança humana

Por Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro, CRP 06/199338

08/12/2025 às 16:45, atualizado em 08/12/2025 às 16:45

Tempo de leitura: 4m

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Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro
Psicólogo
CRP 06/199338 Mogi das Cruzes/SP
Possui vagas para atendimento social

1 - O mito do herói interior Existe uma narrativa cultural profundamente enraizada, quase mitológica, de que dentro de cada um de nós habita um "pequeno piloto" soberano, capaz de direcionar nossas ações puramente através de um esforço consciente e determinado. Chamamos isso de "força de vontade". Quando falhamos em manter uma dieta, abandonar um vício ou sair da cama durante um episódio depressivo, o veredito social — e muitas vezes o nosso próprio tribunal interno — é implacável: faltou vontade. No entanto, à luz da psicologia clínica moderna e das neurociências, essa visão não é apenas simplista; ela é cientificamente imprecisa e clinicamente danosa. Acreditar que tudo se resume à força de vontade é como acreditar que um maestro pode reger uma orquestra durante um terremoto apenas gesticulando com mais vigor.

2- Os limites biológicos do "eu" consciente Para entender por que a vontade falha, precisamos primeiro localizar onde ela reside fisicamente. A capacidade de planejar, focar e inibir impulsos — o que popularmente chamamos de força de vontade — é uma função das funções executivas. Estas são habilidades cognitivas de alto nível processadas principalmente no córtex pré-frontal, a região mais evoluída do cérebro, situada logo atrás da nossa testa.

O problema, como a neuropsicologia contemporânea demonstra, é que o córtex pré-frontal é um recurso biologicamente caro e limitado. Ele funciona como a bateria do seu celular: tem uma carga finita que se esgota com o uso intenso, estresse, cansaço ou má nutrição. Quando essa "bateria" arria, entramos no que os pesquisadores chamam de esgotamento do ego. Nesse estado, o controle consciente enfraquece e estruturas cerebrais mais primitivas e impulsivas, como o sistema límbico (responsável pelas emoções e busca de prazer imediato), assumem o comando. Pedir a alguém sob estresse crônico ou depressão para "ter força de vontade" é exigir que um aparelho funcione sem energia.

3- A tirania do ambiente Se a biologia impõe o primeiro limite, o ambiente impõe o segundo. A Análise Experimental do Comportamento, fundamentada nos trabalhos de B.F. Skinner, nos ensina que não somos agentes livres flutuando no vácuo, mas organismos que respondem a contingências de reforço. Uma contingência é a relação de dependência entre nossa ação, o contexto e a consequência que ela produz.

Imagem do artigo: É só querer e fazer. Se não sai do lugar, não tem o que fazer. Será?

Se um comportamento — por exemplo, comer açúcar quando triste — traz alívio imediato (reforço positivo), ele será fortalecido, independentemente da sua "vontade" de emagrecer. Skinner argumentava que o que chamamos de vontade é, muitas vezes, apenas a nossa incapacidade de identificar as variáveis ambientais que estão, de fato, controlando nosso comportamento. Se o ambiente está desenhado para promover hábitos não saudáveis, a "força de vontade" é uma defesa irrisória contra a engenharia comportamental do mundo ao nosso redor. Mudar exige alterar o ambiente, não apenas o desejo interno.

4- Quando o mapa está errado Finalmente, mesmo que tivéssemos energia biológica e um ambiente favorável, nossa própria mente pode sabotar a vontade. A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), desenvolvida por Aaron Beck, destaca o papel das distorções cognitivas. São erros sistemáticos no processamento de informações que nos levam a interpretar a realidade de forma enviesada.

Imagine alguém que deseja iniciar um projeto, mas possui uma crença central de incompetência ("eu sempre fracasso"). Essa crença gera pensamentos automáticos negativos que drenam a motivação antes mesmo da ação começar. A "vontade" de agir existe, mas é sufocada por um filtro cognitivo que prediz o desastre. Não se trata de falta de desejo, mas de um bloqueio no sistema de processamento de crenças.

5- Além do esforço bruto A recuperação clínica e a mudança de hábitos não ocorrem através do aumento da força bruta do "querer". Elas ocorrem através da engenharia estratégica. Envolve o gerenciamento dos recursos cognitivos do córtex pré-frontal, a modificação inteligente das contingências ambientais que nos cercam e a reestruturação das crenças que nos limitam. A verdadeira liberdade não está em uma força de vontade mágica e inesgotável, mas na humilde aceitação de nossos limites biológicos e no uso inteligente das leis de aprendizagem que regem nosso comportamento.

Referências
BAUMEISTER, Roy F.; TIERNEY, John. Willpower: Rediscovering the Greatest Human Strength. New York: Penguin Books, 2011.

BECK, Judith S. Terapia Cognitivo-Comportamental: Teoria e Prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2021.

GAZZANIGA, Michael S.; IVRY, Richard B.; MANGUN, George R. Neurociência Cognitiva: A Biologia da Mente. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2019.

SKINNER, Burrhus Frederic. Ciência e Comportamento Humano. 11. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SAPOLSKY, Robert M. Comporte-se: A biologia humana em nosso melhor e pior. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

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