A arte de habitar a si mesmo: distinguindo a solidão da solitude

Estratégias da psicologia baseada em evidências para transformar o isolamento em autonomia emocional

Por Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro, CRP 06/199338

07/12/2025 às 18:19, atualizado em 08/12/2025 às 10:32

Tempo de leitura: 5m

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Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro
Psicólogo
CRP 06/199338 Mogi das Cruzes/SP
Possui vagas para atendimento social

Introdução

A experiência humana de estar só é, biologicamente, um paradoxo. Por um lado, somos mamíferos sociais cujo sistema nervoso evoluiu para interpretar o isolamento prolongado como uma ameaça à sobrevivência, ativando áreas cerebrais de dor como o córtex cingulado anterior. Por outro, é no silêncio da presença individual que o cérebro ativa a rede de modo padrão, essencial para a consolidação da memória e a criatividade. A distinção crucial reside na qualidade dessa vivência: enquanto a solidão é uma dor decorrente da percepção de desconexão, a solitude é o estado de competência emocional para desfrutar da própria companhia. A transição de um estado a outro não é mágica, mas sim um processo de reeducação neuropsicológica. Abaixo, exploramos cinco passos fundamentais para essa construção, alicerçados na ciência do comportamento e da cognição. 1. Mapeamento das distorções cognitivas

O primeiro passo para estar bem só é compreender como interpretamos o isolamento. Segundo Aaron Beck, o fundador da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), não são os eventos em si que nos perturbam, mas os significados que atribuímos a eles. Frequentemente, a pessoa que sofre com a solidão é vítima de distorções cognitivas, que são falhas sistemáticas no processamento de informações.

Um exemplo comum é a "leitura mental", onde o indivíduo assume, sem evidências, que está sozinho porque os outros o rejeitam ou o consideram desinteressante. Beck sugere que devemos capturar esses pensamentos automáticos — reflexos mentais rápidos e involuntários — e submetê-los ao teste da realidade. Ao perceber que estar só num sábado à noite não significa "ser indesejável", mas apenas "não ter planos específicos", iniciamos a regulação emocional necessária para a solitude. 2. O ambiente como fonte de reforço

Imagem do artigo: A arte de habitar a si mesmo: distinguindo a solidão da solitude

B.F. Skinner, figura central da Análise Experimental do Comportamento, ensinou que o comportamento é moldado pelas suas consequências. Se, ao ficar sozinho, o indivíduo apenas rumina problemas ou se engaja em atividades passivas e tediosas, o cérebro associa o "estar só" a uma punição. Para migrar para a solitude, é preciso aplicar o conceito de reforço positivo, que consiste na adição de um estímulo agradável após um comportamento, aumentando a probabilidade de ele se repetir.

Neste segundo passo, o objetivo é parear o momento solitário com atividades de alto valor intrínseco. Preparar uma refeição elaborada apenas para si ou ouvir uma música complexa cria um ambiente onde a própria companhia é preditiva de prazer, e não de privação. Skinner argumentaria que estamos alterando as contingências ambientais para que o comportamento de "ficar consigo mesmo" seja mantido e fortalecido. 3. Ativação comportamental contra a inércia

A depressão e a sensação crônica de solidão muitas vezes compartilham um mecanismo de inatividade. O terceiro passo baseia-se na ativação comportamental, uma técnica derivada tanto da obra de Skinner quanto de desenvolvimentos posteriores da TCC. O erro comum é esperar ter vontade de fazer algo para então agir. A ciência mostra que o caminho é o inverso: a ação precede a motivação.

Ao planejar o tempo a sós com intencionalidade, engajando-se em tarefas que geram senso de domínio ou prazer, o indivíduo estimula o sistema dopaminérgico do cérebro. Não se trata de ocupar o tempo para fugir de si, mas de vivenciar o momento presente com qualidade. A inércia alimenta a solidão dolorosa; o movimento proposital constrói a solitude. 4. A regulação da ansiedade pela exposição

Muitas pessoas evitam a solidão por medo do que encontrarão no silêncio. A neurociência nos mostra que a amígdala, estrutura cerebral ligada ao processamento do medo, pode ser hiperativa em indivíduos ansiosos. O quarto passo envolve a exposição gradual, um princípio clássico das terapias comportamentais.

Em vez de buscar distrações frenéticas (como o uso compulsivo de redes sociais descritas nos critérios de dependência digital), o indivíduo deve se expor a pequenos doses de silêncio sem estímulos externos. Começar com cinco minutos de contemplação e aumentar progressivamente ensina ao cérebro que o silêncio é seguro. Com o tempo, ocorre a habituação, processo pelo qual a resposta de ansiedade diminui frente à exposição repetida ao estímulo, transformando o medo em tranquilidade. 5. Validação e aceitação radical

Por fim, o quinto passo alinha-se às terapias de terceira onda e à compreensão atualizada do DSM-5-TR sobre os transtornos de adaptação. É necessário validar a emoção. Sentir falta de outros seres humanos é natural e saudável. A solitude não é a eliminação da necessidade de conexão, mas a capacidade de se sustentar na ausência dela.

Aceitar que momentos de tristeza podem surgir, sem julgá-los como um fracasso pessoal, é vital. Esta postura de aceitação, diferente de resignação, permite que a emoção flua sem se tornar um estado de humor patológico. É o reconhecimento de que somos companhias dignas de nosso próprio tempo. Conclusão

A jornada da solidão para a solitude não é uma negação da nossa natureza social, mas uma expansão da nossa autonomia. Como evidenciam as obras de Skinner e Beck, somos seres moldáveis, capazes de reestruturar tanto o nosso ambiente quanto a nossa cognição. Graças à neuroplasticidade — a capacidade do sistema nervoso de mudar sua estrutura e função em resposta à experiência —, é perfeitamente possível aprender a estar bem só. Ao aplicar estes passos, transformamos o isolamento de um vazio assustador em um espaço fértil para o reencontro consigo mesmo.

Referências
 
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5-TR. 5. ed. texto rev. Porto Alegre: Artmed, 2023.

BECK, Judith S. Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2021.

SKINNER, Burrhus Frederic. Ciência e comportamento humano. 11. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde: CID-11. Genebra: OMS, 2022. 

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