Entre a Saudade e o Diagnóstico: A Fronteira Clínica do Luto

Como distinguir o sofrimento humano natural da patologia que requer intervenção

Por Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro, CRP 06/199338

05/12/2025 às 22:54, atualizado em 08/12/2025 às 10:31

Tempo de leitura: 4m

Foto do profissional Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro
Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro
Psicólogo
CRP 06/199338 Mogi das Cruzes/SP
Possui vagas para atendimento social
Introdução
Vivemos em uma cultura que tem pressa em "consertar" o que dói. No entanto, na saúde mental, nem toda dor é defeito. O luto é o exemplo máximo dessa tensão: um processo devastador, mas biologicamente previsto, que nos obriga a reconfigurar a vida após uma ruptura. Para profissionais e pacientes, o desafio reside em saber onde termina a reação natural e onde começa a patologia. Como nos lembra a psicopatologia clássica, o sofrimento tem função; tentar suprimi-lo antes da hora é como impedir que uma cicatriz se forme.
A Visão de Dalgalarrondo: Reação Vivencial vs. Transtorno
Paulo Dalgalarrondo, referência em psicopatologia no Brasil, nos ajuda a diferenciar a reação vivencial (o luto normal) da doença. Para ele, a reação normal é compreensível e proporcional ao evento: perdemos alguém, logo, o mundo perde a cor. Há um nexo causal claro. A tristeza tem um "endereço".
Já na patologia, essa causalidade se rompe ou se distorce. Ocorre o que chamamos de alteração qualitativa. No luto normal, a autoestima do indivíduo geralmente se preserva ("sinto falta dele"); na depressão ou no luto patológico, a autoimagem é corroída ("eu não valho nada sem ele", ou culpas delirantes). Dalgalarrondo enfatiza que o tempo e a intensidade são balizadores, mas a qualidade da vivência é o que define o diagnóstico.
O Mapa dos Manuais: DSM-5 e CID-11
As classificações atuais trouxeram avanços importantes para dar nome a essas experiências sem patologizar a vida cotidiana, mas mantendo a vigilância clínica.
1. O Luto como Foco de Atenção (Normalidade) Tanto a CID-11 quanto o DSM-5 possuem códigos para situações que levam o indivíduo ao consultório, mas não são transtornos mentais.
  • No DSM-5, utilizamos o código V62.82 (Luto Não Complicado).

  • Na CID-11, o código é QE62 (Reações ao Luto). Esses códigos dizem ao sistema de saúde: "Esta pessoa está sofrendo legitimamente e precisa de acolhimento, mas seu psiquismo está reagindo como esperado diante da morte."

2. Quando o Luto Adoece (Patologia) A linha se cruza quando a adaptação falha. Se após um período prolongado (geralmente acima de 6 meses a 1 ano, variando conforme a cultura e o manual) o indivíduo permanece paralisado, incapaz de retomar atividades ou sentindo um anseio que inviabiliza a vida, mudamos a classificação.
  • A CID-11 introduziu o Transtorno do Luto Prolongado (6B42).

  • O DSM-5-TR consolidou o Transtorno de Luto Prolongado (anteriormente em estudos como Luto Complexo Persistente). Aqui, a saudade deixa de ser um sentimento e torna-se um sintoma que sequestra a funcionalidade.

Normatizar para não Cronificar
É fundamental compreender que normatizar a dor (explicar que ela faz parte do processo, código V62.82/QE62) é o oposto de minimizar. Minimizar é dizer "não chore, passa logo". Normatizar é dizer "seu choro é a prova de que você está elaborando a perda". Quando o clínico ou a rede de apoio validam o sofrimento como uma "reação normal", eles retiram do enlutado o peso de achar que está enlouquecendo. Paradoxalmente, é essa permissão para sofrer que previne que o luto normal se transforme no luto patológico (6B42). O afeto que circula e é falado, é elaborado; o afeto que é silenciado ou julgado, estagna e adoece.

Conclusão O luto, portanto, não é uma doença a ser curada, mas uma travessia a ser suportada e integrada. A ciência, através dos manuais e da psicopatologia, nos oferece as bússolas para navegar esse território. Identificar se estamos diante de um código qe62 ou 6b42 não é apenas burocracia; é a diferença entre oferecer um ombro amigo para quem caminha ou uma intervenção técnica para quem não consegue mais andar. A saúde mental reside na capacidade de aceitar que, após a perda, nunca seremos os mesmos, mas podemos ser inteiros novamente, ainda que com uma nova arquitetura emocional.
Referências
 

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5-TR. 5. ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2023.

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2019.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados com a saúde: CID-11 para estatísticas de mortalidade e morbidade. Versão: 01/2023. Genebra: OMS, [2023]. Disponível em: https://icd.who.int/browse11/l-m/en. Acesso em: 24 maio 2024. 

Este artigo foi útil para você?

Não me ajudou
Me ajudou muito

Você é psicólogo e quer ter mais visibilidade?

Apareça no Google como este artigo — sem pagar anúncios.

Quero saber mais e me cadastrar
Se você está passando por uma crise suicida, ligue para o CVV. O atendimento é realizado pelo site www.cvv.org.br. ou no telefone 188, a ligação é gratuita, 24h. Em caso de emergência, procure o hospital mais próximo. Havendo risco de morte, ligue para o SAMU no telefone 192.