A fábrica do eu: como construímos quem somos

A ciência por trás da personalidade, da memória e da narrativa que chamamos de identidade

Por Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro, CRP 06/199338

11/12/2025 às 03:57, atualizado em 11/12/2025 às 03:57

Tempo de leitura: 4m

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Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro
Psicólogo
CRP 06/199338 Mogi das Cruzes/SP
Possui vagas para atendimento social

Você acorda todos os dias, olha no espelho e sabe exatamente quem está ali. Existe uma sensação de continuidade, uma certeza de que a pessoa que tomou café hoje é a mesma que brincava no parque há vinte anos. No entanto, essa solidez é uma das ilusões mais sofisticadas produzidas pelo cérebro humano. O que chamamos de "Eu" não é uma pedra imutável encontrada na natureza, mas uma construção complexa, um edifício erguido tijolo por tijolo através de processos de aprendizagem e interpretação. A psicologia moderna nos revela que a nossa identidade é, em última análise, uma invenção necessária para a sobrevivência.

Para desconstruir essa arquitetura, precisamos olhar para as fundações lançadas pelo Behaviorismo Radical. B.F. Skinner, em sua obra seminal Ciência e Comportamento Humano, desafiou a visão romântica de que existe um "homenzinho" dentro da nossa cabeça comandando tudo. Para Skinner, o "Eu" não é uma causa, é um resultado. O que chamamos de personalidade é, na verdade, um repertório comportamental, ou seja, um conjunto de respostas que aprendemos a dar ao mundo com base nas consequências que recebemos no passado.

Se você se considera uma pessoa "tímida", por exemplo, não é porque nasceu com um chip de timidez. É provável que, ao longo da sua história, comportamentos de exposição tenham sido punidos (criticados ou ridicularizados), enquanto comportamentos de esquiva (ficar quieto) tenham sido reforçados (geraram alívio). Skinner nos ensina que a identidade é fluida e depende do ambiente. Somos, portanto, o reflexo organizado das nossas interações, moldados pelas contingências de reforço, que são as regras invisíveis de causa e efeito que regem nossa vida.

Enquanto Skinner foca no exterior, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) de Aaron Beck ilumina os processos internos dessa construção. Beck percebeu que o "Eu" é sustentado por narrativas que contamos a nós mesmos. Desde a infância, começamos a formar esquemas cognitivos, que funcionam como óculos permanentes através dos quais vemos a realidade. Esses esquemas solidificam as crenças centrais, ideias profundas e rígidas sobre nosso valor e capacidade.

Imagem do artigo: A fábrica do eu: como construímos quem somos

Quando alguém diz eu sou um fracasso, essa pessoa não está descrevendo um fato objetivo, mas relatando uma crença central que foi construída e fortalecida por anos de viés de confirmação. A mente humana atua como um editor de filme tendencioso, recortando as cenas que confirmam a crença (os erros) e descartando as que a contradizem (os acertos). A "invenção do Eu" é, portanto, uma obra de ficção autobiográfica baseada em dados selecionados, onde a interpretação dos fatos pesa mais do que os fatos em si.

A estabilidade dessa construção é tão vital que, quando ela falha, entramos no terreno da psicopatologia grave. O DSM-5-TR, manual diagnóstico de referência, descreve os Transtornos Dissociativos como uma fragmentação dessa continuidade. No Transtorno Dissociativo de Identidade, por exemplo, a capacidade do cérebro de manter um "Eu" único e coeso se rompe, geralmente como defesa contra traumas insuportáveis. A Organização Mundial da Saúde (OMS), na CID-11, reforça que a integridade da identidade é um componente central da saúde mental. Sem essa coesão, a experiência de vida se torna caótica e aterrorizante.

A neurociência complementa essa visão ao mostrar que não existe um centro único do "Eu" no cérebro. A identidade surge da orquestração de várias redes, incluindo a rede de modo padrão, responsável pela memória autobiográfica. Somos, biologicamente, a soma das nossas memórias acessíveis.

A boa notícia trazida por essa desconstrução científica é a possibilidade de reforma. Se o "Eu" é construído, ele pode ser reconstruído. A neuroplasticidade nos garante que podemos aprender novos repertórios (AEC) e reescrever nossas crenças centrais (TCC). Não estamos condenados a ser quem fomos ontem. A invenção do sujeito moderno é um projeto contínuo e, a cada manhã, temos a oportunidade de colocar um novo tijolo nessa construção, escolhendo narrativas mais gentis e comportamentos que nos aproximem da vida que desejamos viver.

Referências
 
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-5-TR: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5. ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2023.

BECK, J. S. Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2021.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-11). Genebra: OMS, 2022.

SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. 11. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 

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